23.5.09

(I)Mortal

Eu estou tão cansado de ser reprimido por todos os meus medos infantis
E se você tiver que ir, por que apenas não vai?
Por que sua presença ainda permanece aqui? Isso nunca vai me deixar em paz?
Essas feridas parecem não cicatrizar...
Essa dor ainda é tão real...
Isso é simplesmente mais do que o tempo pode apagar.

Quando você chorou eu estava lá enxugando todas as suas lágrimas.
Quando você gritou eu lutei contra todos os seus medos.
Eu segurei a sua mão por todos esse tempo...mas você ainda tem tudo de mim.

Você costumava me cativar com sua luz ressonante, no entanto tudo ficou limitado pela vida que você deixou pra trás.
Seu rosto assombra meus parcos sonhos, me tornando apenas pesadelo e sua voz expulsou o pouco de sanidade que havia em mim.
Essas feridas não vão cicatrizar.
Essa dor...eu ainda a sinto.
Isso é uma coisa que o tempo não pode apagar.

Eu tentei com todas as forças dizer à mim mesmo que você se foi
E embora eu esteja com alguém, ainda tenho estado sozinho por todo esse tempo.

Quando você chorar eu ainda enxugarei todas as suas lágrimas.
Quando você gritar eu ainda lutarei contra todos os seus medos.
E segurarei sua mão quando você precisar.
Você ainda tem tudo de mim...

19.5.09

Madrugada desgraçada

Dra. Mar,

noite passada, após a habitual luta diária contra a insônia, consegui finalmente pregar os olhos às 2 da manhã. Televisão, computador, rádio, cérebro, tudo desligado. Deitei e fechei os olhos, pronto para encerrar mais um dia miserável igual a todos os outros.

Mas é claro que essa história não teria a menor graça se fosse apenas isso. Não, cara doutora, a desgraça é uma companhia teimosa e inconveniente. Poucos minutos após ter encostado o encéfalo cansado no travesseiro puído começo a sentir uma coceira chata no antebraço esquerdo. Não era uma simples coceirinha. Era uma daquelas. Inchou muito rápido. Enquanto ainda coçava a primeira veio a segunda picada. A terceira. A quarta. Era um ataque! Arremessei o cobertor longe, temendo pulgas, e comecei a me coçar inteiro, maldizendo a mim mesmo por não ter um pote de calamina ou algo que o valha por perto. Acendi a luz e descobri que o problema não eram pulgas, mas pernilongos. Um enxame deles! Corri para a área de serviço. Iria terminar a emboscada pernilonguífera com doses maciças de insecticida. Peguei o spray e, quando estava pronto para substituir toda a atmosfera de meu quarto em uma nuvem venenosa lembrei-me de minha gata. Queria matar mosquitos, mas não ela. Não ainda. Ela tem sua utilidade. Não sei bem qual, mas que tem alguma, isso tem.

Toca procurar a Nanda.

Encontrei-a embaixo do guarda-roupa, roncando de boca aberta. Sem muita paciência (lembre-se: eu estava me coçando inteiro) puxei-a e a coloquei no colo. Meu plano era simples: com a gata no colo eu passaria insecticida. Depois nos abrigaríamos no banheiro até a nuvem tóxica se dissipar. Simples assim.

Só esqueci de um simples detalhe: gatos e sprays não se dão exatamente muito bem juntos. Assim que apertei a válvula do insecticida e o primeiro tisss... se fez ouvir, a Nanda se transformou imediatamente num demônio da Tasmânia. É, igual ao desenho. Uma nuvem de garras, dentes e pêlos dilaceraram meu braço, peito e pescoço. Derrubei a lata e a gata ao mesmo tempo, berrando e sangrando. A lata rodopiou pelo chão até se esconder debaixo da cama. A Nanda se desmaterializou como por mágica. Acho que acordei a vizinhança inteira com os xingamentos. Fui no banheiro e estanquei o sangue o melhor que pude (com pedaços de papel higiênico e toalha, pois os bandêides tinham terminado). Com metade do corpo coberto de trapos higiênicos, saí em busca da maldita felina. Não para matá-la, como deveria, mas para prendê-la no banheiro. Fiquei imaginando os pernilongos vendo todo aquele sangue em mim e babando como moleques de rua ao verem uma pilha de crack. Mesmo assim levei absurdos 45 MINUTOS para conseguir capturá-la, tão arisca ela estava após o susto. Desgraçada. Eu que deveria estar assustado. Cão do nono círculo do inferno. Agarrei-a pelo cangote e prendi-a no box do chuveiro. Em seguida esvaziei a lata de insecticida no quarto inteiro e me tranquei no banheiro. Esperei lá por quase duas horas, até que o cheiro de veneno se dissipasse.

Saldo da bisonhice: só consegui deitar efetivamente já passava das 5 e meia da manhã.

Desliguei o despertador e usei as últimas ideias coerentes para inventar uma desculpa para faltar no trabalho hoje. Não consegui inventar nenhuma boa, mas dormi assim mesmo.

Acordei às 8 da manhã com a voz de minha mãe me dizendo: "Ei Lobo, não tem um pão aqui. Vai comprar!" Meia hora depois estava eu no supermercado, comprando pão como um zumbi. Peguei uma fila monstruosa para pagar a compra mirrada. Quem além de alguém completamente desesperado vai ao supermercado às 9 da manhã?! Ou o mundo está povoado por desesperados ou há poucas esperanças para a humanidade. Mas divago.

Voltei pra casa e já passava das 10. Entreguei o pacote e peguei minhas coisas, resignado a ter que ir trabalhar com pouco mais de 2 horas de sono mesmo, quando a mãe me pergunta:

- Lobo, a gata tá trancada no box por alguma razão? Ela tá miando que nem uma louca...

Putz, a gata! Resisti ao primeiro impulso de ir lá libertá-la e, olhando para as feridas em meu braço e lembrando da dor da noite anterior, sentenciei:

- Deixa ela lá. Ela merece. Se começar a desidratar liga o chuveiro e tá tudo certo.

Eu poderia enquadrar a expressão de minha mãe e olhar todo dia antes de ir pro trabalho. Clássico.

Se alguém da APA* ligar aí, você não me conhece, hein?

* Associação Protetora dos Animais

10.5.09

Sem Cortes

O sangue espirrou no asfalto e no tênis novo de Amadeu, fazendo-o xingar tão alto que ofendeu o evangélico Baltazar, que sempre teve orgulho do nome bíblico, apesar de não saber absolutamente nada a respeito do tal personagem, da mesma maneira que Carine também não o conhecia, mas sentia o cheiro acre do suor exalado em suas pregações no meio da praça, torcendo o nariz da maneira que Daniel mais gostava, daquele jeito de menina sapeca que as sardas ressaltavam e o faziam recordar da paixão juvenil por Eleanor, sua primeira professora que, por pura coincidência narrativa, passava ao largo naquele exato instante sem reconhecer os ex-alunos, desviando-se quase na última hora de Felipe, cuja pressa não permitia que perdesse tempo com bobagens, o que o fez trombar com Gisele, assustando-a de tal maneira que seus gritos por um breve instante retiraram Hugo da meditação contemplativa das pombas da praça e o fizeram pensar novamente em Ivana, sua mulher, que havia marcado o encontro com ele lá, na saída do escritório, mas que, graças a Juarez, o chefe da repartição que saía naquele momento da garagem com seu sedã preto, se atrasara, obrigando seu Lima a adiar o fechamento do prédio e a afastar o sono de doze horas de pé com mais uma xícara de café que dona Maria, a copeira, havia salvado da última garrafa térmica da reunião da diretoria, para irritação de sua supervisora, a famigerada e temida Neide, relações pública e torturadora amadora, descontando nos pobres incautos a frustração de sua paixão não correspondida pelo diretor de aquisições, o Dr. Otacílio, que não era doutor em nada, mas gostava de ser chamado desta maneira, pois acreditava que inspirava respeito, algo que seu funcionário e puxa-saco de plantão, o Plínio, fazia questão de ressaltar, para ódio e frustração de Quênia, cujas últimas promoções foram sumariamente rejeitadas por conta do tal puxa-saco e de seu escudeiro, o fofoqueiro Rodrigo, que a havia flagrado aos beijos com Saulo na saída de emergência e ameaçado contar tudo para a namorada traída, Tânia, que por acaso também era a estagiária predileta de Ubirajara, o vice-presidente de tecnologia que estava tão entretido ao telefone com Veridiana, sua esposa, tentando convencê-la de que não conhecia nenhum nome que começava com a letra X para dar a seu bebê que nem notou quando Zé, analista de sistemas e deprimido, se atirou pela janela, espatifando-se como um melão maduro na calçada.
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Apresento-lhe, doutora, uma coisa pequena que eu escrevo em meu tempo ocioso, que a senhora tanto deseja ver.
É um texto reciclado. Antigo, apócrifo e anormal. Como eu.

Espero que odeie.

9.5.09

Cacos

Dra. Mar,

é triste olhar no espelho e ver meu rosto.

Desagradável.

É como se cada ruga, cada reentrância, cada cicatriz, cada fio de cabelo branco em minha têmpora contasse uma história melodramaticamente trágica. Uma história que nunca tem final feliz. E que fica ainda pior ao descobrir que tudo é por minha culpa. Por culpa de minha inação, de minha falta de culhão para tomar a decisão certa na hora certa. Cada marca profunda na minha pele espelha um vacilo, uma resolução covarde, uma cagada em minha vida.

Por que precisamos nos tornar escravos de nossas decisões? Por que nunca aparece alguém e te diz que esta ou aquela decisão específica vai esmerdear o resto de sua vida? Seria tão mais fácil acreditar que existe um velho barbudo sentado num cúmulo de algodão e que planeja a vida de cada um a seu bel prazer. Expiava a culpa por uma atitude equivocada que culminou em uma hecatombe incontrolável.

Mas não existe o tal velhinho. E a gente tem que aprender a lidar com as conseqüências das decisões que nossos cérebros limitados tomam. Por mais que doa, por mais que machuque. E não tem jeito, sempre que tomamos uma decisão crucial na vida ficamos imaginando como seria se tomássemos outra direção. Será que fizemos o certo? Como podemos ter certeza de que a merda que estamos afundando neste momento não é melhor do que uma possível caganeira na outra opção?

E como viver com essa dúvida?

No espelho estilhaçado meu rosto parece uma caricatura desenhada por um Picasso bêbado.

E os cacos fincados em minhas falanges doem.

Mas não mais do que minhas entranhas.

Merda de vida.

Merda.

7.5.09

Ponto Final

Dra. Mar,

eu desisto.

Desisto de tentar. Qualquer coisa. De buscar e se decepcionar. De fugir e não conseguir se esconder. De procurar soluções e se frustrar ao descobrir que elas de nada servem ou apenas servem para gerar mais problemas.

Desisto da humanidade. A humanidade está fadada ao fracasso inexorável. Por mais que teimemos em prolongar nossa permanência nefasta no planeta um dia perceberemos que o mundo estará bem melhor sem nós. Sim, doutora, eu me incluo nessa turba. E te incluo. A todos nós. Você também, meu caríssimo leitor ignóbil que vem aqui sendo ou não convidado. Sua mãe também. Toda sua família. E a minha. E daí?

Foda-se quem jogou a porra da menina pela janela. Se foi o pai, a madrasta, o Peter Pan ou o espírito santo. Foda-se o destino do padre-voador-bisonho e suas bexigas multicoloridas. Foda-se a terra que treme e a falta de assunto da TV aberta.

Desisto também de tentar me matar, seja rápida ou lentamente. Apenas sigo em frente estagnado. Desisto de sentir raiva ou tristeza ou mesmo qualquer sinal de alegria. De procurar sentido numa realidade niilista. De mijar dentro do balde. De respeitar qualquer lei. De batalhar dia a dia tentando prolongar minha existência medíocre. De ajudar os outros a prolongarem suas.

Não, doutora. Não desisto da vida. Desisto de me preocupar em existir.

Foda-se se parece "emo" ou qualquer outra merda rotulada por cabecinhas limítrofes. Pensem a porra que quiserem. Chafurdem em seus raciocínios lógicos. Simplesmente cansei. Não tento mais nada. Sou um subproduto do mero acaso e é com isso que arrastarei meus dias. Chega de vitórias mesquinhas e declarações de renda. De contas infinitas e ganhos limitados. De psicanalistas sem respostas e malucos sem perguntas. De idiotas que não entendem piadas ou que as levam ao pé da letra.

Eu abraço a insanidade e beijo-a de língua.

Pouco importa.

Eu desisto.

E ponto final.

Estou namorando.

1.5.09

Bola de pulgas

Dra. Mar,

dia do trabalho e, como estamos no Brasil, ninguém trabalha. Nem eu. Ainda bem.
Adoro esse país.
Mentira. Deslavada.
A senhora consulta hoje, doutora? Não, não venha querer me dizer que ouvir lamentações de pessoas amarguradas e depois tirar conclusões que elas mesmas chegariam após duas doses de uísque é trabalho.

Mas não vim falar de trabalho. Ou do dia dele. Ou da falta dele. Vim falar de gatos.

Felinos de quatro patas que miam, ronronam e dormem. Muito. Cuspidores de bolas de pelo, culpa das lambidas dadas no corpo inteiro. É, a maioria odeia banho. Não, não temos isso em comum.
Odeio gatos. Desde pequeno. É uma coisa instintiva, sem explicação, irracional e sem qualquer base de fundamentação lógica. Até os matava quando mais novo. Sem motivo. Explodia-lhes com bombas de São João. Bons tempos. Talvez tenha sido um cachorro em outra vida. Não, doutora, eu não acredito em vidas passadas. Mas isso não quer dizer que não exista. Além do mais, a ideia de que estamos fadados à total extinção e extirpação de nossos seres é um tanto sombria e desalentadora. Claro que isso cabe a mim, mas não sou a única pessoa no mundo. Quem dera. Mas divago.

Bem, no último post eu saí para comprar um. E comprei. Mais ou menos.
Não sei porque. Apenas comprei. Algo inconsciente. Sem explicação, irracional e sem qualquer base de fundamentação lógica.
Saí com esse objetivo em mente. Cheguei até a me questionar. "Mas eu odeio gatos. Porque não um cachorro? Um papagaio? Um porquinho-da-índia? Uma colônia de formigas? Uma piranha assassina?". Não. Tinha de ser um gato. Talvez para acabar com essa raiva primitiva. A senhora me apresenta suas teorias sobre o assunto depois (que eu farei questão de ignorar sumariamente). Cheguei ao pet shop. Quanto custa um gato? 200 reais por uma bola de pulgas que só dorme? O pelo é de ouro ou ele caga diamante? Não, esquece, eu acho um na rua. Gato é o que não falta.

Lembrei de um amigo que tinha 7 gatos em casa. Nunca passei mais de 15 minutos naquela casa. Quem sabe ele queria se desfazer de algum. Dei sorte. Ou não. Uma gata tinha dado cria há uns seis meses e ele ainda estava dando os gatinhos. Peguei um. Uma, na verdade. Era uma gata.
Caixa de sapato esburacada. Instruções que eu nunca ia seguir. Rumei para casa. Chegando, interrogações e exclamações. "Que caixa é essa? Um gato? Eu não quero esse bicho na minha casa! Vai estragar tudo, cagar em tudo".
Consegui convencer que eu ia cuidar de tudo e que a maior parte do tempo ele ia ficar no quarto. O que eu tô fazendo por um gato? Devia era explodir a cabeça dele como fiz com tantos outros. Calma, tudo tem uma razão.
Entrei no quarto. Abri a caixa. Aquilo me olha. Mia. Precisa de um nome.
Princesa? Nossa, meu deus, não! Chamem a Reese Whiterspon!
Jack? Melhor não. Nome de homem pode dar problema um dia. Não sei qual, mas pode dar.
Léia? Não. Hobbys e gatos não devem se misturar.
Vodka? Bem...não, melhor não. Já bebo sem nada pra me lembrar, ainda mais chamando todo o dia.
Cameron? Thirteen? Cudy? Esse seriado tá me afetando mesmo...
Emanuelle? Haha, ia ser hilário gritar isso pela casa: "ô rainha da galáxia, vem cá!". Melhor não.
Nesse momento a gata coçou o olho com a parte de trás da pata. Tava com sono. Foi igualzinha a...
Será que...? Isso é apelação demais... Aff, vai ter que ser.

Vai ser Nanda.

Eu sei, eu sou doente. Mas talvez me ajude. Pensa bem, doutora, ou eu curo meu ódio por gatos ou eu passo a odiar outra coisa.
Eu falei talvez, doutora, talvez...