20.6.09

Psicohomicídio

Dra. Mar,

Eu sou mau. Eu sou perverso. Eu sou perversamente mau e maleficamente perverso. E a senhora bem sabe. Aliás, a senhora sabe que fica difícil ir às consultas, então pare com essa mania de ficar ligando e me cobrando, sente o seu traseiro fétido na sua poltrona carcumida e leia essa bosta de blog se ainda quiser acompanhar. Se não quiser, foda-se. E não venha me pedir para atualizá-lo diariamente. Eu tenho mais o que fazer!

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- Bom?

Bom? Mais que bom. Perfeito. Mais que perfeito!

- Perfeito demais pra ser realidade?

O que ele quer dizer com isso? Nada é perfeito demais pra ser realidade depois de se tornar realidade. Por mais irreal e idealizado que algo possa ser, depois de realizado é algo alcançável. É passado. História. Realidade.

- Nem sempre. A realidade é subjetiva.

Isso quer dizer que ele não achou tão bom? Que ele está com dúvidas?

- Eu não. Você que está. Eu já estou decidido.

Por que é sempre assim? Por que sempre me envolvo com os malucos? Por que não posso ter uma vida normal como qualquer outra?

- Porque você é bidimensional. Restrita. Limitada. É uma criaturinha medíocre e fadada a um destino prosaico e sem grandes conseqüências para a humanidade. Você é simplesmente uma bolha no oceano. Um nada cheio de nada. E sabe disso.

Sei? Não sei mais nada. Que papo é esse, meu Deus? Estava tudo tão perfeito, tão idílico, tão ideal! Depois de tanto procurar, quebrar a cara, me decepcionar, eu finalmente encontro o homem perfeito. E agora, depois de tudo o que passamos juntos, ele vem com esse papo. É demais pra minha cabeça. É demais pra mim. Não agüento mais. Acho que vou explodir!

- Quer suas pílulas?

Quero. Dá aqui esse frasco. Vou tomar todas. Na sua frente. Vou morrer de uma forma grotesca para que você não possa mais me machucar assim. Nem a mim nem a nenhuma outra. Quem você pensa que é pra falar assim com uma mulher? Uma mulher como eu! Que absurdo.

- Desce melhor com uísque. Toma.

Dá aqui essa porra! Você vai ver, seu puto. Vou estrebuchar e vomitar em cima de você. Vou morrer em seus braços de uma maneira que você nunca vai esquecer. Ah, se vou. E eu achando que tinha encontrado o homem perfeito, aquele que finalmente abriria meu coração e com quem eu passaria o resto da minha vida.

- E estou realizando seu desejo.

Está? Está. Não, não posso terminar assim. Não posso morrer agora. Preciso vomitar. Me leva prum hospital. Isso não pode estar acontecendo. Parece um roteiro de filme ruim. Não tem sentido. Você é um personagem de um filme ruim?

- Não, eu não sou.

Ufa!

- Você é quem é.

Levanta a cabeça. Abre os olhos. Como é? Como é? Você está louco? Louco, louco, eu só conheço loucos. Será que a louca sou eu?

- Não. Não é louca. Só é pouco desenvolvida. Uma personagem ruim, só isso. Não quero criar nada para você. Não quero usar você. Estou descartando-a. Apagando sua participação ridícula em minha trama. Você não presta nem como alívio cômico. E nada do que eu possa fazer pode melhorá-la. Nada. Como eu disse, bidimensional, fútil, esquecível. Está me ouvindo ainda?Na...

Estou. Isso não pode ser verdade. Não, não. Eu sou interessante. Mereço pelo menos uma ponta na sua trama. Escreva sobre mim? Por favor? Qualquer coisa. Qualquer uma...

- Eu acabei de fazê-lo.

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Dra., será que isso pode ser contabilizado como uma vítima?

13.6.09

E Agora?

Dra. Mar,

Minha gata fugiu.

Não, não estou preocupado. Nunca me importei com ela mesmo. Mas agora não sei o que devo fazer com dois sacos de ração que tenho aqui.

Só espero que a morte dela seja uma coisa rápida.
Odiaria vê-la sofrer pelas mãos de alguem que não fosse eu.

12.6.09

Carapaça

Dra. Mar,

peço relutantemente desculpas pelo texto incoerente da madrugada passada. Foi escrito sob o efeito de psicotrópicos legais e ilegais misturados a um filme sobre anões e o dia dos namorados.

Tá, pode fechar a boca agora. Seu queixo deve ter caído no umbigo, né? Limpa a baba. A senhora já não é nada sexy, babando então chega a me dar náusea.

A senhora bem sabe que não sou ligado a datas ou tradições. Estou pouco me fodendo para páscoa, natal ou qualquer feriado de merda como estes. Só curto a folga. É um domingo de brinde, nada mais. Sem significados ou espíritos presentes, passados ou, deus me livre, futuros. Também não ligo a mínima para feriados comerciais. Dia das mães, pais, crianças, sogras, papagaio, lontra, orgasmo...

Mas não o dia dos namorados.

Não no sentido que meus detratores devem estar resmungando resignados neste momento. Não no senso romântico. Sei lá. Me faz mal. Se tenho com quem passar esse dia eu simplesmente desapareço. Se não tenho me afundo num anonimato seguro em minha toca hermética. Telefone fora do gancho, internet desconectada, celular morto. Não quero ninguém, não desejo ninguém. Só quero ficar sozinho e celebrar minha liberdade egoísta.

Às vezes, isso enche o saco.
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Eu sentei no canto da cama. Era madrugada. Estava quente. Estava sem roupa.

A janela estava aberta, e o ar frio da noite poluída invadia minha privacidade. Gostaria de dizer que apenas as estrelas e a lua haviam sido as testemunhas de minha nudez, mas estaria sendo desnecessariamente poético. Mesmo porque não havia lua nem estrelas no céu poluído. Não, ninguém havia presenciado meu despudoramento noturno. Nem mesmo eu, que na verdade já esquecia o sonho como se ele fosse apenas uma névoa de bituca em meu cérebro. Não que fizesse diferença, era mais um sonho, como tantos outros.

Meu corpo estava amortecido o suficiente para que eu não pensasse nele. Minha boca entreaberta não dizia palavra. Estava seca como minha alma perdida. Meus olhos estavam tão remelentos que era uma esforço mantê-los abertos, mas em meu torpor não me importei. Era um cadáver insone.

Sem razão aparente, caí num choro agoniado. Apenas meu rosto se franziu com o irromper das lágrimas. O corpo permaneceu imóvel, exceto pelos espasmos pulmonares necessários para emitir gemidos angustiados. Não queria cobrir meu rosto. Não tinha vergonha de minhas lágrimas, pelo contrário, queria espalhá-las ao mundo, como uma chuva de canivetes agridoces. Queria que cada alma, cada condenado, cada filho da puta desse mundo recebesse uma gota dela. Que as ruas se inundassem de minha tristeza sem nome ou razão, mas nem mesmo consegui inundar meu próprio colo.

As lágrimas secaram, mas eu insisti no choro seco. Com a unha do polegar apertei a pele branca de minha coxa, até que ela se rompesse e o sangue fluísse. A dor foi excruciante, maldita, divina, libertadora. As lágrimas voltaram a correr por alguns segundos, mais pela dor física do que emocional, mas secaram novamente logo em seguida.

Espalhei o sangue que escorria pela perna. Era pouco, mas suficiente para tingir minha pele com um tom inicialmente róseo, e depois escarlate coagulado. Com a mão ainda suja usei-o como tinta para uma máscara de palhaço. Pintei cruzes sobre meus olhos, e um grande sorriso sangrento emoldurando minha boca.

O sangue parou de jorrar pela ferida. Era superficial e insignificante como minha angústia sem objetivo. Ergui-me.

Deixei o vento noturno lamber meu corpo, secando suor, sangue e lágrimas numa casca impenetrável, uma armadura biológica para quaisquer males que venham de fora. Era minha concha, minha carapaça, minha crisálida com cara de palhaço. E eu era um Louva a Deus ateu, esperando a decapitação pós-coito que nunca virá.
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Doutora, eu odeio o dia dos namorados.

Retificando: eu odeio o dia dos namorados SEM ELA.

Catarse

Dra. Mar,

quando o barato termina, o cigarro se apaga e o uísque seca no fundo do copo a gente saca.

Simplesmente saca.

Saca que somos descartáveis. Que somos um acúmulo casual de células fadadas à dissociação. À reassociação. À dissolução.

Sem solução.

É isso.

Por enquanto.

Por não sei quanto.

Foda-se o que você pensa.

Neste momento sou eu contra o mundo.

E não sinto piedade do mundo.

8.6.09

Réquiem Antevisto

Dra. Mar,

Eu sou uma pessoa que só é afetada por constatações muito bem feitas. E muitas vezes eu só as encontro vindas das bocas de meus mestres. Esta é uma delas. E me fez pensar um bocado.

"Todo mundo um dia se decepciona. Mesmo quem se protege da cabeça aos pés um dia vê alguém se aproveitar de uma rachadura mínima na blindagem. Penetra sutilmente por aquele buraquinho e te encontra onde você é mais vulnerável. É neste momento que você percebe que não importa a força da armadura quando o interior ainda é mole.

Acontece. Dizem que para os felizardos acontece mais de uma vez, mas pergunte a opinião dos felizardos antes de chegar a alguma conclusão.

A gente sabe que é irracional, incoerente e, por que não, impossível. Mas é aí que a gente acredita mais. Que investe mais. E que comete o maior número de bobagens.

Não me arrependo de nenhuma decisão que tomei. Não me compreenda mal. Eu sabia onde estava me metendo desde que começamos. Sabia que a partir daquele momento meu padrão havia sido elevado. Só que mesmo sabendo como terminaria eu te incluí nesta trama. Fui egoísta, sim, mas qual apaixonado não o é?

O problema com a realidade é que ela é realista demais para ser invadida por fantasias. Mesmo as mais realistas. O inevitável chegou e agora preciso arrancar você de seu cantinho cativo em meu coração e colocá-la em seu novo lar em minha memória.

(Sim, o amor e a paixão nos tornam bregas)

Eu fico aqui. Com meu uísque, meu cigarro e meu baseado. Para beber, fumar e lembrar de você todo dia que a solidão te chamar e apenas o silêncio me responder. E para sentir aquilo que eu nunca quis sentir por você:

Sentir sua falta."

Isto serve para duas pessoas, mas com quase absoluta certeza vai especificamente para uma delas. Isto me levou a pensar profundamente sobre o rumo que minha vida está tomando e se vale realmente a pena o que estou fazendo. Eu não queria adimitir, mas quando a verdade é jogada na minha cara eu não tenho como me esconder, concorda?

Vale a pena ter começado algo que eu sei como vai acabar?

É inevitável. Sempre acontece. Não é agora que vai ser diferente. Eu queria que fosse, mas não é. Não é assim que a realidade funciona. Continuo nessa montanha-russa desgovernada? Acho que eu não tenho escolha alguma agora.

Relaxa e goza, Lobo.

E chora depois.

He's just the kind of man
You hear about
Who leaves his family for
An easy out
They never saw the signs
He never said a word
He couldn't take another day

Carry me to the shoreline
Bury me in the sand
Walk me across the water
And maybe you'll understand

Once the stone
You're crawling under
Is lifted off your shoulders
Once the cloud that's raining
Over your head disappears
The noise that you'll hear
Is the crashing down of hollow years

She's not the kind of girl
You hear about
She'll never want another
She'll never be without
She'll give you all the signs
She'll tell you everything
Then turn around and walk away...

5.6.09

Aprendendo a viver

The way your heart sounds makes all the difference
It's what decides if you'll endure the pain that we all feel
The way your heart beats makes all the difference
In learning to live
Spread before you is your soul
So forever hold the dreams within our hearts
Through nature's inflexible grace
She's teaching me to live...

Dra. Mar, mesmo que indiretamente, ela está me ensinando...

1.6.09

Arrotando Tutu

Dra. Mar,

a senhora bem sabe que não tenho e nunca tive pretensão nenhuma de ficar rico. Nenhum objetivo de angariar mais dinheiro que eu possa gastar. Sei bem de minhas capacidades econômicas e já a algum tempo assumi essa minha limitação. Sou pobre e sempre serei. Vivo numa casa modesta, ando de ônibus velho e fedido e me visto com roupas puídas e fora de moda (aliás, o que é moda?). Sou o que sou e não tenho vergonha nenhuma disso. Não tenho orgulho, mas tampouco tenho vergonha. Tenho o estilo condizente com os meus rendimentos e não mais que isso. Sou...

Ah, você entendeu!

O que EU não entendo é essa mania que o povo tem de aparentar mais grana do que realmente tem. Manja aquele negócio de comer tutu e arrotar caviar? Gastam tudo e um pouco mais apenas para ostentar o que não tem. Compram carrões em crediários gigantescos, apartamentos caríssimos com juros escorchantes, roupas de griffe pornograficamente caras, acessórios e balangandãs inúteis só para mostrar que são ricos. Quando não são. Mas não interessa o que se é. Interessa o que os outros acham que você é. A opinião alheia é mais importante que a própria. Realmente não consigo compreender.

Digo isso pois ontem eu estava voltando de um churrasco e, numa crise de bobeira, deu uma fome absurda. É, eu mais bebi que comi no churrasco (MUITO mais). Convenientemente estava passando ao lado de um McDonald's. Como estava com muita preguiça para cozinhar e mesmo tentando evitar a todo custo aquele lanche com gosto de feno, me aventurei porta a dentro. Na minha frente na fila, uma garota de, no máximo, uns 25 anos. Linda, toda arrumada e emperequetada. O braço esquerdo estava com ao menos umas 20 pulseiras com aparência de caras. O cabelo loiro indefectível, o que, num domingo a noite, é coisa rara de se ver. Rosto bem maquiado. Roupa impecável. Linda mesmo. Sério.

Mas como expliquei no primeiro parágrafo, tenho plena noção de meu estado atual e do que as pessoas pensam de mim. Sabia nesta primeira análise que uma mulher daquela só chegaria perto de mim se fosse pra dar esmola ou enxotar. Ou ignorar acintosamente. Aumentei o volume do mp4 até que o ruído quase estragasse completamente a música. A fila andou um pouco e chegou a vez da mini-perua-em-experiência fazer seu pedido. Fez. Forma de pagamento? A mão excepcionalmente manicurada entregou um cartão daqueles "platina" ou "diamante". Ela digitou a senha e ambos aguardamos. Meu estômago roncava. Cartão recusado. Deu outro. Mesmo ritual. Mesmo resultado. Mais um cartão, mais uma recusa. Outro! E mais um! Todos sumariamente recusados. O pessoal na fila começava a ficar impaciente. "Puta que os pariu" escapando por entre os dentes. Eu só observando enquanto a graça e a pose da vaquinha desapareciam aos poucos. Quando ela entregou um VALE-REFEIÇÃO vi que já não havia mais esperanças de redenção de sua pose. E pior: igualmente recusado!

Aí decidi interferir. Perguntei qual o motivo de tamanha demora. Ela engasgou ao tentar responder. O atendente ficou elegantemente mudo. Disparei: "Querida, se não tem como pagar, porque não sai fora? Tem gente com fome aqui querendo comer...". Ela nem se dignou a tentar responder. Sacou o celular e ligou pra alguém. "Sou eu, benhÊÊ. Estou no Mac e não estou conseguindo passar nenhum cartão. Já tentei. Esse também. TODOS! Juro! Não sei, espera", e se dirigiu ao atendente: "Moço, aceita cheque?". Até eu, na minha ignorância completa, sei que o MacDonald's não aceita cheques faz tempo. O desespero e os bravejos iam a mil.

Eu podia ter feito tanta coisa ruim, doutora. Tanta crueldade. Podia deixá-la como uma galinha d'angola numa montanha russa desgovernada se eu quisesse. Claro que podia. Mas ao invés disso simplesmente perguntei ao atendente quanto tinha saído a compra dela. "Dezessete e cinquenta". Saquei a carteira e paguei com uma nota de vinte. O cara não acreditou, mas confirmei com um gesto de cabeça. Vai nessa, pode cobrar. Me dá o troco.

Só aí que a perua-destronada percebeu o que estava acontecendo. Ela tentou dizer que não era pra eu fazer aquilo, que ela ia conseguir, essas coisas. Rejeitei magnanimamente seus argumentos com um sorriso. Ela não sabia onde enfiar a cara. Desligou o celular na cara do BenhÊÊ e me pediu o número de minha conta, que ela me pagaria aquilo amanhã mesmo, essas coisas. Recusei solenemente. Ao invés disso cheguei perto dela e soltei o golpe fatal:

- Relaxa, linda. Eu arroto tutu.

Voltei pro meu canto antes que ela conseguisse entender o que eu tinha dito. Duvido que algum dia entenda, mas tenho esperanças. Acabou pedindo pra viagem. Ela pegou sua sacola marrom e saiu. Fiz na sequência meu pedido e fui pra casa comer.

Garanto uma coisa: foi o melhor Big Mac da minha vida.